terça-feira, 29 de abril de 2014

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Pediu-me o Relógio (rapaz de mil artes e ofícios) que escrevesse um conto (mas que de ilusões se alimentará este rapaz?). Seja como for e também, por ventura, algum respeito, acedi (pura loucura ou apenas mórbida curiosidade de ver até onde é que o meu corpo fragilizado por horas infindáveis em torno de petiscos alentejanos aguentava). Antes ainda de iniciar e vos iniciar na encruzilhada que se segue e no fatal começo de todos os contos do meu dia a dia (quem me manda ser contador de estórias?), devo-vos avisar de que a acção se situará, numa primeira fase, em Santarém, terra onde aliás nasci. Só isso faz com que associe a ela todo um conjunto de factores míticos e místicos, apenas acentuados pelas inúmeras igrejas (com preferência especial pela da Piedade, pelo simples facto de ter a forma de uma cruz grega, contrastando com o claro domínio da latina), as casas que nos contam estórias e ameaçam desabar a qualquer instante e a (quase) inevitável visão do Tejo nos miradouros onde devia ter beijado mais raparigas do que as que beijei na realidade. Se a ordem do mundo (ou pelo menos da minha vida) se tivesse invertido e tivesse nascido em Grândola (aguentem, peço encarecidamente, o fervor pavloviano de invocar a música do Zeca Afonso), talvez agora ousasse uma estória baseada na terra donde vos escrevo. Enfim. Era uma vez (agora sim, confessem lá o doce prazer de ver a estória começar) uma cidade onde nasceu um menino que gostava de poesia. Os pais trabalhavam dedicadamente numa farmácia cujo nome não irei revelar (por ora) e que, obviamente, estranharam tamanho problema no rapaz. Ele, coitado, tendo nascido a 10 de Novembro de 1948, dever-se-ia ter preocupado com o facto do Eusébio só ter completado a instrução primária em Portugal, ou a vinda da Rainha Isabel II ao nosso país na primeira emissão da nacional televisão RTP. Mas como ia a dizer, ele gostava de poesia. Também gostava de pintar, mas dessa arte poucos sabem ou conhecem pois não foi muito visível. Os que viram conseguem (ainda hoje) garantir a pés juntos que ele nunca teria sido ninguém se se tivesse dedicado só à pintura, até porque isto é um país (e deixem-me que vos diga com algum rancor na voz) que não dá o mínimo apoio à pintura. Tirando, claro está, a Paula Rego que vive em Inglaterra e o Júlio Pomar que ninguém sabe quanto tempo mais se aguentará vivo, não existe verdadeiro apoio à nossa pintura. Talvez por isso ele nunca tenha exposto a sua pintura ao mais alto nível e se tenha dedicado à poesia. Também, ouvi dizer, gostava de teatro e até que tinha bastante jeito para a coisa, pois anos mais tarde chegou mesmo a fundar não uma, não duas, mas três companhias, das quais só uma parece funcionar bem nos dias que correm. Mas regressemos à poesia. Aos seis anos, já com o seu fato de marujo, construía pequenos teatros de papel onde recitava pequenos poemas que a família/amigos ou quem quer que seja que frequentasse a casa do bairro de São Bento (felizes são os pobres pois deles é o reino dos céus) lhe ensinava com algum fervor, mas não muito. Que isto estas coisas da poesia são bonitas, mas nada de excessos. Mas esse gosto pela poesia e também as dívidas de muito boa gente para com a farmácia dos pais, fez que o nosso pobre rapaz fosse acarinhado por quase todas as pessoas de uma Santarém que alimentava um Liceu onde os finalistas trajavam de negro, havia bailes de e da sociedade e os toiros percorriam livremente a Avenida do Tribunal (que entretanto se encontrava a ser construído pelos voluntariosos presos de Alcoentre) em época de Feira e Feiras. Embora fosse muito acarinhado, havia sempre um ou outro amigo de verdade que lhe dizia, Tem cuidado António que com isso da poesia nem sei onde vais parar. Mas ele sorria no seu jeito cachopo e continuava a saltar e percorrer as pedras centenárias da cidade, como o rio que corre na esperança de encontrar o mar. Um dia caiu. Levantou-se e continuou a saltar. E saltando foi até que a cidade ficou pequena. O doce Tejo com a Lezíria e Almeirim de pano de fundo já não era suficiente e partiu então rumo a um Tejo a que muitos chamam já mar. O pequeno António já não era assim tão pequeno e queria continuar a crescer. E com ele a poesia. O doce e nervoso desejo de saber mais, conhecer mais. Viver mais. Nessa cidade onde o rio tem marés e cheira a mar, as portas dos teatros abriram-se revelando novos mundos que o fizeram crescer e sonhar. E foi o teatro (quem diria?), o teatro que o fez viajar, ver mundo e dar um uso à poesia. Coitado, os anos passavam e aquele gosto incessante pela poesia continuava ali, presente, teimoso como um felino que tendo morto a sua presa, continua a agitá-la no ar apenas pelo gosto sádico da vitória. Mas porquê?, perguntavam-se os pais aflitos, que tendo pago estudos para que voltasse doutor o viam por tão sinuosos caminhos. Em serões mais frios na tal casa do bairro de São Bento, salpicavam de tempos a tempos acusações mútuas de terem despertado no rapaz tal gosto, já que agora nem no nosso país parava quanto mais em casa. Mas o nosso país também cresceu. Deixámos de ser o país que não era pequeno para passarmos a ser um país aberto (mais ou menos). E o António chegou à televisão e directamente ao orgulho de todos os pessimistas, que em Santarém, como noutro qualquer ponto a mais de 70 quilómetros de Lisboa acontece, são a larga maioria. Na farmácia perguntava-se pelo Toni e havia orgulho nas respostas que ecoavam por entre os frascos de álcool e os unguentos para maleitas várias. Talvez por isso tenha optado por ficar conhecido como Mário. A poesia, pouco lida por entre as hostes revolucionárias, começou a ser ouvida por uma voz trabalhada que não o era tanto como o olhar que rompia televisores e nos furava a alma. Por vezes não percebíamos as palavras, mas o olhar era capaz de nos deixar sem dormir. Sem falar. Sem comer (sem respirar). Com a consolidação democrática ganhou prémios e condecorações. Sorria sempre. Crítico e cínico (tantas vezes), mas sorria sempre. Mesmo quando, em pleno acto de loucura (e sinto espuma e sangue e cânticos nos lábios) se candidatou a presidente da república. Morreu no ano seguinte (quase parecendo mentira), vítima de uma doença que ainda hoje ninguém quer ter. Era o dia 1 de Abril de 1996 e os rumores ressurgiram por entre as centenárias pedras da calçada de uma cidade que ainda hesitava em ser moderna, Isso foi da poesia. É onde nos leva quem se mete com a poesia. Mas para mim, que pouco sei desta história para ser tido em conta, deixo um lamento profundo de que é o que acontece a quem de bem se mete com a política. PS- A verdade é que a farmácia Viegas ainda lá está, de cara lavada, mas com um nome que invoca muito mais do que caixas de paracetamol.

Um comentário:

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